Anderson Novello
Querida Tia Tita:
Hoje, por algum motivo incerto, tive saudades da gemada com erva-doce que a senhora fazia quando eu era criança. Não sei se foi o inverno curitibano, mas algo me fez lembrar dos chás que a senhora fazia e que, durante anos, acalmaram as dores da alma de toda família. Lembrei-me também de todos os cafés da manhã com polenta frita – sua especialidade.
Eu trocaria qualquer restaurante refinado para poder tomar seu café novamente.
Quando eu tinha dez anos, gostava de esperar a senhora ir tirar seu tradicional cochilo da tarde. Eu ia até o jardim e improvisava uma vara de pescar com um cabo de vassoura qualquer. No lugar da isca, colocava uma flor e um bilhetinho – que eram lançados pela janela. Enquanto a senhora não acordava para pegar o “presentinho”, eu não sossegava. Quando isso acontecia, eu saía correndo e me escondia, convicto de que a senhora nunca descobriria a identidade do admirador secreto que, todas as tardes, enviava uma flor e um bilhetinho.
A senhora não casou e não gerou filhos. Mas criou sete. Eu e meus seis irmãos. Enquanto a mãe trabalhava e o pai viajava, a senhora gerenciava a vida de sete criaturas. Eu era o caçula e – por favor, não desminta – era o seu preferido. Não fosse isso, a senhora não teria dado cobertura a tantas traquinagens – impedindo que elas chegassem aos ouvidos do pai e da mãe.
Quantas surras foram economizadas graças à sua proteção? A senhora foi meu anjo na terra.
Quantas dores de estômago a senhora conseguiu curar, apenas esquentando panos – madrugada a dentro – e colocando-os sobre minha barriga?
Quantas pernas esfoladas e dedões do pé arrebentados a senhora curou apenas com mercúrio e calma?
Quantas “escolinhas” a senhora foi obrigada a assistir quando eu brincava de ser professor? A senhora não ia muito bem nos “deveres” e sempre tirava nota baixa. Sua caligrafia também não era das melhores. Tia: cresci e tornei-me professor. E nunca mais tive uma aluna tão especial quanto a senhora. Creio que sou um professor melhor do que naquela época (embora continue dando notas baixas e me deparando com caligrafias difíceis).
Nos encontramos pela última vez quando eu tinha 15 anos. A senhora se foi sem dizer tchau e sem me dar um abraço.
Sem me fazer um chá. Sem me servir café com polenta. Sem nada.
Eu estava dormindo na casa da minha irmã Lena e a senhora estava no hospital. Na madrugada, o telefone tocou, estridente e agoniado, tal qual as batidas do meu coração. A Lena atendeu, fez silêncio e, ao desligar, me disse:
– Você vai ter que ser forte.
Preciso confessar: não fui, não sou e nunca serei forte. A senhora se foi há 22 anos e, de lá para cá, não houve panos quentes colocados sobre a minha barriga que dessem conta de curar sua ausência.
Gostaria de poder improvisar novamente uma vara de pescar e, no lugar da isca, colocar mais uma flor (a última) e mais um bilhetinho (o último) escrito: “Fique um pouco mais. Fique para mais um chá. Fique para mais um café com polenta. Fique para mais uma gemada com erva-doce.”
Os invernos são mais doloridos sem a senhora.
Com amor,
Seu sobrinho professor.
Texto publicado, originalmente, no facebook em 05 de julho de 2015.
Também publicado no Jornal Tribuna da Lapa-PR.